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sábado, 30 de julho de 2011

CENSO DE 2010. SER MESTIÇO NÃO É ABERRAÇÃO.

Reproduzo este texto de Leão Alves porque é uma bela lição de História e de evolução das palavras. Além disso mostra com funciona o mecanismo que pretende trazer para o Brasil o modelo de racismo americano, dividindo o mundo entre pretos e brancos. O que faríamos nós, a maioria, em cujas veias circula sangue europeu, asiático, negro, índio de modo misturado? Seremos classificados brancos ou negros pela tonalidade da pele, independente de nossos antepassados? A quem interessa mudar as cores do Brasil?

Meus pais são brasileiros. Mas suas raízes são uma lição prática do que é ser verdadeiramente brasileiro. Temos sangue índio, sangue português (e, por meio do português, sangue mouro) , sangue judeu português, sangue judeu belga, sangue alemão e, na família da avó materna, ancestralidade negra. 

Isso é ser brasileiro. Há brancos sem mistura, provavelmente no Sul; há negros sem mistura; na Bahia; há índios puros. Todos brasileiros. Mas, nós, os mestiços, somos a maioria.
Essa é a verdade. Gostem ou não os ativistas brancos, skinheads, ou os ativistas negros e suas cotas. 

O Brasil é um país mestiço.  

Kabengele Munanga e a “aberração mestiça”

Leão Alves

O sociólogo Demétrio Magnoli publicou no jornal O Estado de São Paulo, de 14 de maio de 2009, artigo intitulado “Monstros tristonhos”, no qual  relata casos de impugnação de mestiços por “tribunais raciais” montados para julgar aqueles que deveriam ou não usufruir das vagas reservadas a estudantes pretos e pardos (incluídos arbitrariamente na “raça negra”). Revela também, através de citações de passagens da Introdução escrita pelo antropólogo Kabengele Munanga para o livro Mulato: Negro-não-Negro e/ou Branco-não-Branco, de Eneida de Almeida dos Reis (São Paulo/SP: Editora Altana, 2002. Coleção Identidades), uma das  ideologias que têm conduzido à discriminação contra mestiços. No artigo, Demétrio Magnoli critica o racialismo e conclui que as cotas raciais visam na verdade levar o mestiço a optar entre ser “branco” ou ser “negro”.

Em “Manifestação do professor Kabengele Munanga acerca da matéria ‘Monstros tristonhos’”, o antropólogo responde ao artigo do sociólogo. Kabengele Munanga é professor titular da Universidade de São Paulo. Dentre suas obras destaca-se Rediscutindo a Mestiçagem – Identidade Nacional versus Identidade Negra. Foi também organizador de Superando o Racismo na Escola, editado pelo Ministério da Educação do governo petista e utilizado na formação de professores. Sua obra é uma referência para, possivelmente, grande parte do ativismo negro no Brasil.

Segundo a autora de Mulato: Negro-não-Negro e/ou Branco-não-Branco, a obra visa “discutir a questão da identidade do mulato buscando elementos explicativos para compreender a sua complexa e contraditória relação com o meio social” (p. 26) e em nota de rodapé ela se explica, “Utilizo o termo mulato porque é o mais comumente usado para designar o negro mestiço, sabendo que o termo vem de mulo, significando animal mamífero, que resulta do cruzamento de jumento com égua ou de cavalo com jumenta” (os grifos nas citações são nossos). Na apresentação do livro é informado que ele resultaria de sua dissertação de mestrado em Psicologia Social, na PUC/SP (p. 14). Segundo o antropólogo Kabengele Munanga, em sua “Manifestação…”, “O livro se debruça sobre as peripécias e dificuldades vividas pelos indivíduos mestiços de brancos e negros, pejorativamente chamados mulatos, no processo de construção de sua identidade coletiva e individual, a partir de um estudo de caso clínico”. Chamados por quem? Ele não informa.

Não sei se devido a uma inevitável falha humana, mas tanto a autora quanto o antropólogo não informaram ao leitor que a origem do termo mulato é incerta, havendo duas hipóteses mais aceitas: a árabe e a latina. Segundo a primeira, derivaria da palavra árabe muwallad, ‘mestiço’, derivada de walada, gerar, parir, seja diretamente, seja através da palavra muladi, que fazia referência a cristãos convertidos ao Islã durante a dominação árabe na Península Ibérica. A palavra foi inicialmente aplicada a brancos descendentes de mouros e europeus. Após a chegada dos europeus à América passou também a significar mestiços de pretos e indígenas, de franceses e indígenas, e finalmente, de pretos e brancos. Segundo a hipótese latina, derivaria de mulus, no sentido de híbrido, aplicado inicialmente a qualquer ser. Há uma significativa literatura acadêmica tratando desse assunto, sem chegar a uma conclusão definitiva. A ausência de referência a este fato e a ausência de citação desta literatura em um livro supostamente dedicado à questão do Mulato merece atenção, pois algo assim pode ser esperado em obras de propaganda, mas não em trabalhos com finalidade acadêmica.

A propósito, sou mulato e nunca percebi ter sido chamado pejorativamente por este termo, exceto por alguns ativistas de movimentos negros que se iraram quando assumi minha identidade mestiça numa audiência do Senado em Brasília acerca do PL das Cotas Raciais, e em alguns outros eventos similares. Como dissemos, a tentativa de dar ao termo mulato uma conotação depreciativa visa atingir o objetivo político de constranger o mulato e fazê-lo identificar-se como negro.

Também é significativo o contraste com o silêncio sobre o fato do próprio termo negro em muitos países ser considerado ainda ofensivo. A história do Brasil registra que seu emprego foi proibido pelo Diretório dos Índios, de 1755, por estar associado à idéia de escravo,

“Entre os lastimosos princípios, e perniciosos abusos, de que tem resultado nos Índios o abatimento ponderado, é sem dúvida um deles a injusta, e escandalosa introdução de lhes chamarem Negros; querendo talvez com a infâmia, e vileza deste nome, persuadir-lhes, que a natureza os tinha destinado para escravos dos Brancos, como regularmente se imagina a respeito dos Pretos da Costa da África. E porque, além de ser prejudicialíssimo à civilidade dos mesmos Índios este abominável abuso, seria indecoroso às Reais Leis de Sua Majestade chamar Negros a uns homens, que o mesmo Senhor foi servido nobilitar, e declarar por isentos de toda, e qualquer infâmia, habilitando-os para todo o emprego honorífico: Não consentirão os Diretores daqui por diante, que pessoa alguma chame Negros aos Índios, nem que eles mesmos usem entre si deste nome como até agora praticavam; para que compreendendo eles, que lhes não compete a vileza do mesmo nome, possam conceber aquelas nobres idéias, que naturalmente infundem nos homens a estimação, e a honra.”

O termo negro, porém, vem perdendo esta carga depreciativa. Se o termo negro pode ser ressignificado, por que o termo mulato, se tivesse uma carga pejorativa, não poderia também merecer uma ressignificação?

Eneida de Almeida dos Reis também afirma que teve como fonte de dados “cerca de dez histórias (incluindo algumas de negros)” (p. 36). Kabengele Munanga pretendeu, porém, basear em apenas “cerca de dez histórias” sua tese sobre o que diz ser “o doloroso processo de construção da identidade individual do sujeito mestiço”? Parece-me que não. O antropólogo atribui à formação biológica dos mulatos a causa que faria de todos eles essencialmente fadados a problemas psicológicos, exceto se assumissem, não a sua identidade mestiça, mas a negritude. Em nenhum momento ele admite a existência, ou sequer a possibilidade de existência, de mulatos que vivam plenamente bem sua identidade mestiça.

Uma implicação desta idéia seria ter que admitir que os mulatos seriam seres incompletos, dependentes da identidade negra, individual e coletiva. Em resumo, defende que,

1.   os mestiços seriam seres naturalmente ambivalentes em termos biológicos,  pois em sua genética possuiriam cromossomos de ‘branco’ e de ‘negro’;

2.   socialmente, politicamente e ideologicamente, porém, os mestiços não poderiam “manter e sustentar” essa ambivalência biológica;

3.   os mestiços, devido à “prática social”, iriam se identificar como negros, por dois motivos: entre os brancos seriam rejeitados por não possuírem “pureza racial”, enquanto entre os negros, ainda que sejam discriminados “em diversas situações”, prefeririam se identificar com estes por “solidariedade política com a maior vítima da sociedade”.

Quando Kabengele Munanga emprega o termo mestiço ele está se referindo em sentido biológico. Para o antropólogo não há, ou não deve haver, uma identidade mestiça. Em “Uma abordagem conceitual das noções de raça, racismo, identidade e etnia”, escreve,

“Esta identidade política [a identidade negra] é uma identidade unificadora em busca de propostas transformadoras da realidade do negro no Brasil. Ela se opõe a uma outra identidade unificadora proposta pela ideologia dominante, ou seja, a identidade mestiça, que além de buscar a unidade nacional visa também a legitimação da chamada democracia racial brasileira e a conservação do status quo.”

E os mestiços que, em vez de optar por uma identidade branca ou por uma identidade negra, assumissem sua identidade mestiça? O antropólogo Kabenguele Munanga não responde na primeira pessoa, mas informa que “construir a identidade ‘mestiça’ ou ‘mulata’” é considerada por “mestiços conscientes e politicamente mobilizados como uma aberração política e ideológica, pois supõe uma atitude de indiferença e de neutralidade perante o processo de construção de uma sociedade democrática, na qual o exercício da plena cidadania, a busca da igualdade e o respeito das diferenças constituem tributos fundamentais.” Quem seriam estes “mestiços conscientes” que o antropólogo não nomeia? Quem seriam estes “mestiços” tão conscientes de sua identidade que eles mesmos defendem que esta não deva ser ‘construída’? Como é possível falar em ‘respeito das diferenças’ sem respeitar uma identidade mestiça independente? O “politicamente mobilizados” parece indicar a resposta.

O anti-racialismo, no entanto, também não está imune aos recursos do racismo. Que raças biológicas não existem é algo sedimentado. O racialismo em si, ou seja, a crença em raças biológicas, não é, porém, o que gera o racismo. No Brasil, a crença em raças não conseguiu impedir, nem durante a presidência de Lula, que a mistura entre indígenas, brancos e pretos continuasse a ocorrer (destacando que ‘branco’, ‘indígena’ e ‘negro/preto’ não são sinônimos de “raça branca”, “raça indígena” e “raça negra/preta”). A idéia do encontro e miscigenação entre indígenas, brancos e pretos deu ao povo brasileiro a base de seu sentimento de identidade nacional.

O racismo está ligado antes de tudo a sentimentos de hostilidade e tende a se manifestar na discriminação e no repúdio à mestiçagem, e pode inclusive fazer uso do anti-racialismo: basta mudar o discurso racista tradicional do “estou preservando minha pureza racial” pelo discurso racista dissimulado do “estou preservando minha pureza étnica”. O objetivo é o mesmo: evitar a miscigenação.

O ‘mulato’ não é um produto do racialismo, apenas indica pessoas descendentes de humanos brancos e pretos, uma referência a aparência e origem e não a raças biológicas. ‘Caboclo’, da mesma forma, é um termo desenvolvido por indígenas para se referir aos mestiços descendentes deles e de brancos. São termos muito antigos, anteriores às formulações acadêmicas que até hoje inspiram o racismo.

Para se combater o racismo, não cabe combater o emprego de palavras como indígena, branco, mestiço, caboclo, preto, mulato, negro, etc. O núcleo do racismo não está na idéia de raça, mas na radical defesa da “pureza racial”, que vai da exaltação da endogamia à execração do mestiço e da mestiçagem. Por isso, evitar o emprego de termos que expressem miscigenação, como mestiço, mulato e caboclo, serão úteis ao racismo e seus discursos.

Leão Alves é médico e secretário-geral do movimento Nação Mestiça.

25 DE JULHO DE 2011

TEXTO REPRODUZIDO DO BLOG NAÇÃO MESTIÇA:

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